Acompanhamento: Pipoca sabor bacon com suco de tomate
Trilha sonora: The end (The Doors)


Senhores, vamos supor apenas por um segundo que esse sujeito aqui sentado diante de vocês não seja quem achamos que ele é. Eu sei, eu sei. Nós sabemos que ciência é uma coisa e imaginação é outra. Mas a história desse sujeito aqui sentado, se fosse verdade, provaria o contrário. Vamos supor então que esse sujeito aqui se chame Frederico. Diga olá, Frederico. Nada de gracinhas vocês aí da última fileira! Estamos fazendo ciência aqui ou não estamos? Seu nome é Frederico e ele é um jornalista. Ou costumava ser. Frederico insiste que chegou até a nossa instituição a convite de um escritor. Se Frederico não deveria achar estranho o encontro ser justamente em um instituto psiquiátrico? A ciência diria que sim, mas não estamos aqui para julgá-lo. Até porque Frederico consegue descrever com clareza esse homem excêntrico que é o escritor, que já foi à Amazônia, à Mongólia, à Rússia só para escrever livros. Nesse caso um manicômio não seria estranho para uma entrevista, não é mesmo Frederico? A intenção aqui não é contrariar as evidências desse caso clínico. Mas apenas constatar que a imaginação do nosso paciente também faz sentido. Só peço a vocês, meus senhores, que ouçam os relatos de Frederico.



Tudo se embaçou agora. Logo agora que estou aqui, parado, com os braços caídos na frente desses olhares estarrecidos. E isso depois de ter acreditado estar vendo tão claro. Naquela manhã de outono, desembarquei do táxi aos berros. O vigarista me cobrou o dobro pelas duas horas de estrada até aqui. Os guardas da entrada começaram a me olhar como se eu fosse uma aberração. Sou jornalista e vim entrevistar Bernardo Carvalho, foi o que eu disse a eles. O mais baixinho abriu o portão e apontou para o jardim. Bernardo estava sentado perto da fonte enquanto os demais internos ensaiavam uma peça de teatro para ele. Quando me aproximei pelo pátio, Bernardo se levantou e todos do elenco congelaram. Achei que o uniforme da instituição o deixaria constrangido. Mesmo assim me olhou firme nos olhos. Ele disse o meu nome. Eu confirmei. Naquele momento eu estava encantado com a educação de Bernardo. Não sabia que ele ficaria me devendo muito mais do que o dinheiro do táxi. Bernardo afugentou todos eles e se ofereceu para carregar minha maleta e meu casaco. Vou te mostrar as dependências do casarão, foi o que ele me disse. Se eu aceitei? Claro que eu aceitei! E é só por isso que estou aqui agora, parado, com os braços caídos na frente destes olhares estarrecidos.



– Tem certeza que não preciso preencher nenhuma ficha de visitantes não, Bernardo?


Um grito firme perturbou a maternidade Arnaldo de Moraes e acordou boa parte dos idosos de Copacabana. Na noite de 5 de setembro, em 1960, Bernardo não havia pedido, mas teve que nascer. A ponto de enlouquecer com o choro, Beatriz convenceu o marido de pegar um avião para São Paulo o quanto antes. “Eu não sei exatamente o motivo, mas me trouxeram muito cedo para São Paulo”. Os olhos de Bernardo deslizam dentro da armação dos óculos, como se o passado fosse uma estrada só de ida. “Minha mãe se separou do meu pai quando eu tinha dois anos, então eu voltei com ela para o Rio de Janeiro”. Um tique na pálpebra esquerda o faz lembrar de outra coisa: “Na verdade, ficamos morando na casa da mãe dela em Petrópolis por um ano”. E mais outra: “Depois disso nos mudamos para o Rio de Janeiro, na casa de uma tia”. Bernardo nunca separa memória e imaginação.



– Não seria melhor chamarmos um responsável para ir com a gente? Talvez um enfermeiro?


Ele e a mãe moraram temporariamente na rua Afrânio de Mello Franco, no Leblon. A irmã de Beatriz era casada com um diplomata e passava longos períodos fora do Brasil. “A mulher mais bonita do mundo no porta-retratos em cima da escrivaninha”. Além de lembrar dos olhos fantasmagóricos dentro da moldura, ele recorda das histórias de ficção científica e dos romances policiais que a mãe contava na casa grande e vazia. “Quando eu fui ler os livros dela, descobri que ela narrava as histórias melhor do que eram de fato”. Bernardo não usa metáforas quando escreve e, muito menos, quando fala.



– Os azulejos do corredor são realmente bonitos, mas temos mesmo que só pisar nos de cor branca, Bernardo?


Depois de um ano se mudaram para um apartamento em Ipanema. A mãe passava boa parte do tempo trabalhando como secretária no Citibank e Bernardo ganhava horas livres de televisão. “Fui uma criança inculta”. Bernardo ligava a imagem preto e branco. O Poderoso Hércules tinha braços fortes e arremessava árvores e rochas no monte Parnaso. Bernardo desligava. Depois ligava. As ninfas se banhavam no lago. Desligava. Ligava de novo. O Centauro bufava e estufava o peito para lutar. Bernardo desligava e jurava que não veria mais. “Eu comecei a achar que aquilo era um distúrbio e que eu tinha que me controlar”. Os distúrbios identificados por Bernardo vêm, justamente, da obsessão em identificar distúrbios.



– Ninguém faz nada pra impedir aqueles sujeitos de se pendurar nas colunas?


Os filmes também começaram a perturbar Bernardo desde o dia em que a mãe o levou na matinê do Cine Pax. O acesso ao edifício art-déco era o mesmo da Paróquia de Ipanema. Naquela manhã, depois de assistir Tom & Jerry, saindo em direção à Praça Nossa Senhora da Paz, Bernardo viu a estátua de um cristo pálido e decepcionado. Ele entendeu o sinal, mas não se intimidou. Para ver Uma odisseia no espaço foi até o Roxy, de Copacabana. E Solaris, chegou a levar os colegas da 3ª série mais de uma vez no Cine Lido, na praia do Flamengo. De tanto abusar da sorte, Cristo lhe aplicou um golpe baixo. Na festa de aniversário de uma amiga, o pai dela desapareceu quando trazia o 16 mm de Mágico de Oz que iria projetar. “No final das contas ele não aparecia porque tinha sido preso, mas só porque tinha barba e estava perto de uma manifestação na rua”. A mãe da aniversariante tranquilizou os convidados e o pai já não corria perigo. Mas Bernardo passou a ficar atento aos sinais mesmo assim.



– Bernardo, esse seu uniforme é tamanho único? Não é por nada que ele deixa todo mundo parecido aqui dentro.


Com onze anos Bernardo ganhou do pai um cavalo de competição. Todos os dias, depois do colégio, almoçava e tomava um ônibus até o clube Marapendi, na Barra da Tijuca. Treinava o mascote de segunda à sexta e competia nos finais de semana. “Pelo menos ali não ouvia falar de filmes”. Ou pelo menos até começar a frequentar a cinemateca do MAM. Foi lá que recebeu mais um sinal. Dessa vez não foi Cristo, mas Antonioni que lhe deu a letra quando o filme Eclipse repetiu por uma semana inteira. Bernardo não esperou pelo golpe baixo. Se na sessão seguinte não passasse um filme novo, venderia o cavalo. “Depois descobri que o acervo deles é que era precário e os filmes começavam a repetir a partir de um momento”. Bernardo encontrou uma explicação verossímil, mas acreditou no sinal assim mesmo.



– Nossa, Bernardo, tem até uma biblioteca nesse pavilhão! Desse jeito eu até passaria um tempo por aqui.


Com o dinheiro do cavalo, Bernardo dividiu seu destino em planos A e B. Primeiro faria um filme, A. Em seguida viajaria a Paris, B. Seu primeiro curta-metragem foi uma refilmagem de Intriga Internacional, do Hitchcock. Contratou ator, carro, fotógrafo e gravaram a cena em que Cary Grant foge de um avião no meio do milharal, só que na praia da Barra. “E sem o avião, óbvio”. Quando revelaram o negativo, o filme estava totalmente riscado. “Um grão de areia entrou enquanto o filme rodava”. Bernardo, que abomina dramalhões, passou ao plano B. Comprou passagens para Paris com a outra parte do cavalo. Na época seu francês era um pouco chucro. O que ajudou bastante na luta por uma cadeira nos seminários de Foucault, no Còllege de France e no curso de Deleuze, em Saint-Denis. Ao final de três meses, o cavalo de Bernardo havia ido longe: “Carreguei uma mala com 50 quilos em livros de volta”. Bernardo tem aquela aura de mistério dos escritores, sem que no fundo haja mistério nenhum.



– E aqueles são os dormitórios coletivos, certo? Pensando bem, acho que eu não me adaptaria assim tão fácil, Bernardo.


De volta para o Rio de Janeiro, juntaria o equivalente a 50 cavalos para estudar na École Superieure d’Études Cinématographiques. Passados quatro anos, guardou o diploma de Jornalismo da PUC no armário e tomou um voo para Paris. Apesar de ter chegado na etapa final para a vaga de estudante estrangeiro, seu nome não apareceu na lista dos aprovados. Os 50 puros-sangues lhe dariam uma formação tardia. Ficou um ano frequentando a Cinémathèque Française e lendo obsessivamente escritores como Thomas Bernhard, Junichiro Tanizaki e Joseph Conrad. “Demorei para entender que eu não queria fazer cinema. O que me atraía era a coisa narrativa. Era poder contar as histórias”. A partir de então, Bernardo começaria a produzir os próprios sinais ao invés de persegui-los.



– A arquitetura do casarão é realmente maravilhosa, Bernardo. Mas aqui nessa ala ninguém parece querer brincar de teatro.


Assim que voltou para o Brasil, Bernardo se mudou para São Paulo. Começou a trabalhar como repórter do caderno Ilustrada, na Folha de S. Paulo e a fazer um mestrado sobre cinema na USP. Não haveria sinal que chamasse a atenção de Bernardo nos anos seguintes. Em 1987 foi cobrir o Festival de Cannes e, logo depois, passou a editor do suplemento Folhetim. Nem mesmo quando foi enviado como correspondente à Paris, um ano depois, viu sinais. Com vista para a Praça da Bastilha, tentou escrever mais de uma dezena de inícios de romances. “Eu não conseguia passar do primeiro parágrafo”. Bernardo fala como se fosse duas pessoas. “Não é que eu não conseguia”. “É, talvez eu não conseguisse”. De qualquer maneira, após onze meses, era hora de voltar para São Paulo.



– Não, Bernardo, não! A gente não vai entrar na sala de tratamento intensivo. É proibido, você não tá vendo a placa?


Ao retornar à redação, o jornal tentava moderar a guerra entre Paulo Francis e Caio Túlio. O ombudsman tomava partido dos leitores da Folha, que criticavam as extravagâncias de opinião do colunista. “Ele não consegue escrever certo palavras em francês, torce citação até de Shakespeare” – diziam. Francis acabava de deixar sua vaga de correspondente em Nova York e Bernardo foi designado como um dos substitutos. Há mais de um ano vivendo na 5ª Avenida, o sinal definitivo não veio de Cristo, nem de Antonioni. Mas das entonações prolongadas de Paulo Francis. “Desde que ele foi embora, uma música começou a tocar na minha cabeça” – lembra. Uma das teorias apocalípticas do fenômeno Francis se tornava realidade e afetava Bernardo em cheio. Com o plano Collor, a Folha cortou do contracheque todos os correspondentes internacionais. “Tenho dinheiro guardado e vou ficar escrevendo” – decidiu. Com vista para a Union Square, Bernardo selecionou onze dos parágrafos que já havia começado e trabalhou no seu primeiro livro.



– Bernardo, Bernardo? Cadê você? Tá tudo escuro aqui dentro!


O primeiro livro de Bernardo foi publicado em 1993, mesmo ano em que voltou para o Brasil. Deixou os originais em um envelope na recepção da Companhia das Letras e em uma semana, o editor-chefe Luiz Schwarcz telefonou dizendo que queria publicar. Os contos de Aberração reúnem uma horda de personagens perturbados por desaparecimentos, mentiras e mal-entendidos. O absurdo é um sintoma constante e generalizado. Não há tranquilizantes para a falta de respostas nas histórias de Bernardo. “O paradoxo é importante para a minha literatura” – explica. Tanto a loucura como a razão podem fazer sentido e ainda assim permanecer ilógico. “A literatura é uma condição absolutamente negra da realidade e que, ao mesmo tempo, te permite dar um grito dentro da escuridão”. Sendo assim, lugares impensáveis como uma cidade subterrânea ou uma civilização-miniatura são perfeitamente aceitáveis para os seus personagens. Do seu livro de estreia até 2002, quando ganhou o Prêmio Portugal Telecom por Nove Noites, já havia publicado outros cinco romances. Todos levando a sanidade do leitor ao esgotamento. A trilogia que compreende Onze (1995), Teatro (1998) e Medo de Sade (2000), cria uma estrutura em que a primeira parte conta uma história para, em seguida, desmarcara-la. São tramas artificiosas e com tantas camadas de significados que exigem o tino do leitor. “Uma ficção menos grande público”. Bernardo ainda ganharia muitos prêmios, mas nunca deixaria de ser um estranho no ninho.



– Você passou dos limites, Bernardo! Se nos pegam aqui, estamos encrencados!


“Me interessa muito o desvio”. Bernardo sai detrás do biombo com um guarda-pó branco e abre a janela. As grades de ferro esquadrinham os internos que ensaiam no pátio. O silêncio se mistura com o cheiro de álcool das paredes. Bernardo passa o dedo pelas enciclopédias e livros de patologias que estão na estante. “Passei a utilizar a paranoia como um artifício literário” – com o indicador e o dedo médio imita duas perninhas que saltam de lombada em lombada. Alguns gritos abafados escapam das alas vizinhas. O escritor indica a maca de pacientes. “Imaginação é fundamental e só vem com a experiência” – ele explica enquanto afivela pulsos e tornozelos. Em seguida umedece as gazes e fixa os eletrodos em cada uma das têmporas. “Para mim, literatura é uma forma de escapar de si mesmo”. Bernardo admira sua própria imagem na pupila trêmula da cobaia.



– Bernardo, a gente pode fazer um acordo. Eu posso te ajudar a sair daqui se você me soltar.


O livro Nove noites produziu a descarga mais alta no conjunto da sua obra. Não por acaso, na época em que o romance foi lançado, o gênero de não ficção começava a ganhar mais espaço no mercado editorial. Biografias, grandes reportagens e relatos de viagem estavam fazendo um sucesso estrondoso. Se a literatura de ficção quisesse chamar a atenção do público leitor, teria mais chance oferecendo histórias baseadas em fatos reais. Ficções ligadas a fatos históricos e sobre a vida dos escritores ganharam um selo de qualidade nas livrarias. “Ler algo que não existe, que partiu da cabeça do escritor, criava uma resistência para esse leitor”. Bernardo pode ficar possesso, mas nunca se descabelaria como Doutor Caligari. Os efeitos colaterais são evidentes: “É como se a literatura tivesse que ter uma utilidade”. Foi então que Bernardo decidiu colocar remédio e veneno na mesma colherada. “Vou dar um livro que é uma armadilha” – Bernardo faz aviãozinho zuuuuum para o leitor.



– Bernardo do céu, você vai mesmo apertar esse botão!?


Em Nove noites, um jornalista lê o artigo de antropologia sobre o caso de “Buell Quain, que se suicidou entre os índios krahô, em agosto de 1939”. A investigação havia sido encerrada sem uma explicação sobre a morte do americano. Diante dos pontos abertos da história, o personagem se embrenha em um matagal de fatos para resolver o mistério. Enquanto o jornalista viaja até a aldeia indígena, o leitor se guia por um testamento confiável, escrito pelo amigo da vítima, Manoel Perna. O estrangeiro confiou a Manoel uma oitava carta que precisa chegar às mãos do protagonista: “Tudo me levava a crer que a carta que ele lhe deixou ao morrer podia revelar a verdade, qualquer que ela fosse”.



– Bernardôôô Bernardôôô Bernardôôô dôôô


Porém em Nove noites “Só a verdade poria tudo a perder”. O leitor é largado sem referências na mata densa do romance. Para qualquer lugar que corra, não será possível descobrir a verdade sobre o caso. O narrador de Bernardo deixa o leitor sem norte ao desviar a rota da trama: “Manoel Perna não deixou nenhum testamento, e eu imaginei a oitava carta”. Sendo a ficção a única resposta que poderá ter, o leitor se vê encurralado: ou se suicida como Quain Buell, ou continua a ler a história.



– Bernardo, tá tudo embaçado na minha cabeça, Bernardo! E esse cheiro de queimado!?


“Passei a buscar situações em que não entendesse nada do que estava acontecendo à minha volta”. Bernardo mediu a pressão arterial do paciente e completou a própria frase: “… o que é justamente o contrário da ciência”. Para escrever Nove noites, o escritor fez uma incursão na Floresta Amazônica. De um medo falso, produzido intencionalmente nos dias em que passou na aldeia dos índios Krahô, surgiu o aparato para escrever o romance. “A paranoia é justamente você criar sentido onde não tem”. Pouco tempo depois, receberia um convite da editora portuguesa Cotovia para escrever Mongólia. Em parceria com a Fundação Oriente, foi enviado ao Deserto de Gobi por três meses. Ao viajar de carro pelo país, teve a ideia do livro. “Em vez de fazer um relato de viagem, de compreensão do outro, eu queria não entender o outro em nada”.



– dôôô dôôô dôôô dôôô dôôô dôôô dôôô dôôô dôôô


Em Mongólia, um fotógrafo desaparece no deserto e um diplomata é encarregado de encontrá-lo. Bernardo deu corpo a um romance espasmódico e tortuoso. O idioma local provoca desentendimentos e os dois personagens estão longe de cruzar o mesmo caminho. “É como se estivesse procurando no planeta errado”. Se o romance ganhou o prêmio Jabuti em 2004, também recebeu críticas daqueles que se inspiraram no relato para uma viagem de férias. “Não vi nada do que você disse no livro!”. Bernardo imita um dos leitores e solta um risinho esquisito.



– Quem é você, seu esquisito? E por que você tá vestindo as minhas roupas?


“A despeito da minha vontade os livros foram lidos como histórias baseadas em fatos reais”. Nove noites ficou conhecido como um livro autobiográfico e Mongólia, um relato de viagem. “Isso me deixou maluco da vida!”. Bernardo chacoalhou o termômetro e colocou na boca mole do paciente. “Eu vou é fazer um livro só de mentira, sabe?”. Em O sol se põe em São Paulo os personagens saíram da obra de Junichiro Tanizaki. A dona de um restaurante japonês guarda uma história antiga e procura alguém para escrevê-la. O escolhido, porém, não pode entender nada em japonês e nem saber a sua verdadeira identidade. “Preciso que você imagine. E o que você imagina nunca vai ser o que foi” – diz a velha japonesa ao primeiro escritor que encontra. Mais do que um personagem não poder confiar no outro, um leitor de Bernardo não deve jamais confiar na literatura.



– Seu filho da mãe, foi você que colocou esse uniforme horroroso em mim!?


O livro O filho da mãe foi gestado pela série Amores Expressos, que enviou 17 escritores a diferentes partes do mundo para escrever um romance. Bernardo foi assaltado logo que desembarcou em São Petesburgo, na Rússia, em outubro de 2007. “Não era mais esse medo literário, esse medo de brincadeirinha”. Bernardo acaricia os cabelos da vítima. De qualquer maneira, o livro foi escrito a partir de uma experiência fora de controle. “O risco é fundamental na minha literatura”. O olhar alucinado sobre a cidade permitiu uma trama tensa e claustrofóbica entre dois personagens. Andrei e Ruslan se escondem nos becos escuros de São Petesburgo. Um deles é desertor do exército. O outro teve o passaporte confiscado por ser caucasiano. Desgarrados da própria pátria, já não podem sair do país. Fogem da polícia, fogem da guerra e até deles mesmos: “Quatro horas depois, quando abrir os olhos, ele já não estará ao seu lado”.



– Onde é que você tá indo? Não me deixa aqui preso nessa maca!


Em Reprodução, o escritor não passou por nenhuma situação de risco. Também não foi necessário se deslocar para escrever o livro. “O que me interessa é você se sentir mal em qualquer lugar”. Bernardo veste o casaco do jornalista e empunha a maleta. O personagem do seu romance mais recente está prestes a tomar um voo para Xangai, quando é interceptado pela polícia na fila de embarque e preso em uma salinha do aeroporto. Acostumado a circular pela internet como se pudesse andar livremente pelo mundo, ele se vê agora em uma realidade que não está conectada na rede. “O senhor não vai reter o meu passaporte, vai?”. Quanto mais o personagem fala, mais complicada fica a sua situação com as autoridades. Bernardo sai pela porta.



– Moço, eu não sou Bernardo coisa nenhuma, moço! Me larga! Quem é você? Quem são essas pessoas de branco que não param de anotar tudo o que eu falo?


Muito bem, meus senhores, agradeço a presença de todos vocês. Diante desse relato, não há dúvidas sobre os distúrbios que um escritor como Bernardo é capaz de causar. Um leitor poderia acabar perfeitamente como Frederico, sentado diante de nós, sem conseguir diferenciar ele mesmo de outra pessoa. Mas isso, claro, se estivéssemos no campo da literatura e da ficção. Até que esse rapaz não consiga provar que seu nome não é Bernardo, como consta no prontuário que encontramos na sala de tratamento intensivo, ele não existe. E Frederico é mera suposição. Mas fique tranquilo, rapaz, não estamos aqui para te julgar.



Biblioteca: Réplica da Muralha da China. Divide o apartamento de um extremo a outro. Na base estão filmes e quadrinhos. “Eu gastava tudo em Asterix, Tintim, o índio americano Humpá-Pá e os quadrinhos do cowboy Lucky Luke”. Escassa literatura infantil, como A mulher que matou os peixes, da Clarice Lispector e uma versão de Robinson Crusoe, da Coleção Monteiro Lobato. No topo estão Thomas Bernard, Joseph Conrad e Tanizaki.


Leitor ideal: Aquele que está disposto a tudo.


Personagem: Geoffrey Firmin, de Under the volcano (Malcolm Lowry)



Ilustração: Luiz Wachelke