Marcia Tiburi


Acompanhamento: Ossobuco com vinho tinto

Trilha sonora: Ain’t Got No, I Got Life (Nina Simone)



Doutor, vou explicar por que estou aqui, doutor. Também vou fechar os olhos. Assim o retrato do Freud, ali na parede, não vai ficar me olhando como se eu fosse um lunático. Um, dois, três, lá vai: ontem entrevistei a Marcia Tiburi. Aquela mesma doutor, a filósofa pop que aparecia no programa de tevê. Pois é, ela tem quatro livros de ficção. Mas a surpresa não é essa, doutor. É um outro livro. Um romance perigoso, em que o autor é um escritor argentino. Quase ninguém conhece. E ele também é psicanalista. Igual ao senhor, só que escuta os problemas dos outros em castelhano. Mas ó, lá vai: a história é de uma paciente dele. Uma escritora. Desde a primeira sessão, ela falava dos livros que andava escrevendo. Ele ficou hipnotizado. Suas consultas atropelavam os horários seguintes. Até perdeu pacientes por isso, doutor. E a cada novo encontro, esse velhaco metia a mão nos escritos dela. Convencia a pobre a modificar os personagens, incluía trechos, desviava a rota da trama. A paciente foi perdendo o eixo. Ficou meio lunática. Escrevia no chão do próprio apartamento e saía de casa apenas para ir ao consultório dele. Era de se esperar, né doutor? Com um retrato do Freud na cara e sendo analisada em castelhano, quem não ficaria?



Marcia Tiburi tem uma legião de leitores. As editoras adoram ela, mesmo que a crítica garanta que os quatro livros não caiam no gosto popular. Os jornais afirmam que a sua literatura é considerada difícil para o leitor médio. Medir uma obra entre fácil e difícil é conflituoso: “Esses medidores não vão nos ajudar a fazer literatura”. Marcia tem frases fortes e fala no plural, como se a massa de leitores estivesse na mesma sala que ela. Antes da literatura, ela já publicava livros de filosofia, como o Filosofia Cinza e o Filosofia em comum. O último deles, Olho de vidro – A Televisão e o Estado de Exceção da Imagem, faz uma análise filosófica sobre a televisão, a partir da sua participação no programa Saia Justa, do canal GNT. Ela também já escrevia ensaios, artigos para a revista Cult e fazia parte de inúmeras coletâneas. Ao lançar o primeiro livro de ficção, uma fatia massuda dos leitores antigos comemoraram. A estreia foi com o romance Magnólia, finalista do prêmio Jabuti de literatura e três edições emplacadas. A mulher de costas, publicado em seguida, sumiu das prateleiras. E antes que viesse o terceiro e o quarto título de ficção, ela adiantou para os jornalistas – Agora vê se deixa o leitor médio em paz, poxa!



Quando cheguei na casa da Marcia, me certifiquei que o piso era mesmo de madeira. Não havia nenhuma aglomeração de leitores. Apenas ela, sentada no sofá. Toda de preto e com a mão apoiada na cabeça. A pose era idêntica à que o escritor argentino descreve no romance: “Tão bela e misteriosa quanto Alice Reed, em The woman in the window”.



Posso começar te chamando de Marcia, Marcia?


“Gosto de dizer que sou filósofa porque é debochado”. A risada dela ecoou pelas paredes da sala. Eu ri junto. O Sócrates também riria, se ele estivesse ali com a gente. Ele se metia a dar aulas de filosofia em praça pública. E os colegas filósofos, que tinham escolas, se mordiam de inveja. Então dizer que a Marcia é filósofa é tão debochado quanto dizer que o Sócrates era pop.



Marcia, acompanhe os movimentos desse relógio com os olhos, Marcia.


Na sala de aula havia umas vinte crianças. A professora circulava entre as carteiras. Os pequenos repetiam juntos como bonecos recém-tirados da caixa: eme com á má, eme com é mé, eme com í mí, eme com ó mó, eme com ú mú. – E como a vaca faz? A professora conferia os biquinhos: muuuu. Só houve um som diferente no meio do coro. – Como é que a vaca faz, Marcinha? Os colegas afrouxaram os lábios e olharam para a garotinha descabelada dos fundos. – Vai já sentar lá na frente, espertinha!



Quando eu contar até três, você pode abrir os olhos. Marcia, tá me ouvindo, Marcia?


“Não é trabalho do escritor reinventar a escrita?”, ela ergueu apenas uma das sobrancelhas. Antes de ir para a escola, Marcia já sabia ler e escrever. Foi alfabetizada pelo irmão mais velho, quando tinha cinco anos. O primeiro boletim da escola chegou durante o almoço. O pai largou o pedaço de carne e abriu o envelope. “Marcia lê e escreve bem para a sua idade”, leu em voz alta. Logo abaixo, havia uma observação em vermelho. Ele pegou o bife, chupou o tutano e continuou: “Às vezes confunde as letras com desenhos”. Ele largou a carta lambuzada sobre a mesa. A carótida saltou do pescoço – Vai já pro seu quarto, mocinha! E a mãe se desesperou – E essa mancha na toalha, quem vai limpar?



Deixe fluir, Marcia, pense em voz alta. Finja que eu não estou aqui.


As tardes eram longas em Vacaria. As vacas mugiam no quintal. Marcia passava os dias no quarto enchendo os cadernos de escritos. Saía apenas na hora do jantar. Os pais, de barriga cheia, deitavam no sofá para assistir tevê e comer sobremesa. Ninguém a perturbava. Com as gavetas cheias, Marcia juntou os rascunhos e fez uma fogueira no quintal. “Jogar o texto fora dá liberdade sobre a escrita”, ela tentou se explicar enquanto as labaredas se aproximavam da varanda e as vacas corriam. – Sai já desse quarto, criatura! E a mãe só queria saber quem ia limpar a mancha de sagu no sofá – Quem, meu Deus, quem?



Acho que temos um bom caminho aí, Marcia, continue.


Marcia passou a frequentar a Biblioteca Municipal de Vacaria pelas tardes. Levava pilhas de Marx, Kierkgaard, Nietzsche e Schopenhauer para casa. Logo se mudou para Porto Alegre. Entrou na faculdade de Artes Plásticas e no curso de Filosofia ao mesmo tempo. Os professores de filosofia da PUC tinham um silêncio diferente. Era final dos anos oitenta e alguns deles ainda ressurgiam com o fim das cassações militares. Os colegas pegavam livros na biblioteca e se trancavam nos dormitórios. Marcia nunca viu fogueiras no pátio: “É por isso que alguns filósofos escrevem tão mal”, concluiu. No curso de artes, os desenhos de observação eram um tédio. Decidiu fazer um mestrado, um doutorado e que voltaria a escrever sozinha no próprio quarto: “Minha literatura veio marcada por conceitos, mas também por imagens”.



Marcia, lembre-se que não estou aqui para te julgar, Marcia. Deixe sair, deixe sair!


Antes de terminar o doutorado, alugou uma casa só dela. As fogueiras eram proibidas no novo condomínio. Então um colega da filosofia sugeriu os papiros. Eram iguais aos egípcios, só que mais resistentes. Marcia encomendou uma folha de 45 m2, a área total do seu apartamento. Revestiu o chão com o material e se pôs a escrever em todos os cantos. Foi assim que deu início à sua Trilogia íntima. Três livros escritos ao mesmo tempo e sobre o mesma superfície porosa. O atapetado suportava inúmeras camadas de escrita: “Só o primeio livro teve três versões”. Marcia ficou trancafiada por três anos. Saía de casa apenas para as sessões de terapia: “Fui desmontada e remontada”, ela confessou sem desviar o olhar.



Marcia, me fale mais sobre isso, Marcia.


Magnólia foi o primeiro romance a ser recortado do chão. Magnólia é uma personagem sem consistência humana. Ela tem apenas memórias. Essa mulher passa um dia inteiro retirando velharias de uma gaveta. E depois tenta organizar essas lembranças para mostrar ao leitor. Para isso, chama cada uma delas de “fatos”. São cem no total. “Meu terapeuta achou que o foco do romance estava nos fatos”. Mas as artimanhas da linguagem enrolaram o doutor que escutava em castelhano. Os cem fatos, também podem ser sem fatos. Porque nem todos eles são visíveis. A gaveta é uma dobra da Magnólia. E ao abrir, ela vasculha o próprio interior. Afinal, a casa é uma fantasmagoria da personagem. E é dentro dessa casa, feita de linguagem, que ela perambula como um fantasma.



Marcia, vamos detalhar mais esse quadro? Vamos, Marcia?


A segunda tesourada no carpete deu origem ao romance A Mulher de Costas. Quando Marcia era criança, costumava ouvir a lenda da Salamanca do Jarau, narrada pelo escritor Simões Lopes Neto. “Nessa lenda, as mulheres não tinham voz”. Então a escritora decide recontar a mesma história com uma de suas personagens, a Berenice. Essa princesa moura, que foi transformada em salamandra, ganha voz. Ela cruza o deserto em busca de um espelho para ver o próprio rosto. Sempre esteve escondida atrás dos panos. O livro? O livro é do tamanho de uma pessoa: “Sempre se trata de uma questão pessoal que você doa para a ficção”, ela garantiu. E o doutor? O doutor apenas se identificou com a protagonista da história. Ele é o homem de costas para ele mesmo.



Marcia, esse espaço comporta qualquer tipo de raciocínio, Marcia. Não tenha medo.


Com o que sobrou do piso, foi feito O Manto. Nesse último pedaço amarelado, a personagem Leda recebe uma casa de herança da mãe que nunca conheceu. Lá dentro, ela se depara com um armário. E dentro dele, uma caixa de sapatos com nove fitas. Ao escutá-las, a órfã não tem dúvida: a voz é da mãe. Obstinada, ela decide transcrever as gravações e transformá-las em um livro. “Literatura não é descrição e nem reportagem”, alertou. Mas o que é, então? Para Marcia, é o esforço da escrita. Não por acaso O Manto inicia com um prólogo datilografado pela própria Leda. Justo ela, que tem apenas um braço e cuja máquina de escrever não tem a letra “a”. Seu dedo machuca e sangra. A trilogia tem o caráter do incompreensível impresso na própria linguagem. Marcia não nega. Afinal a literatura não serve para explicar o mundo. Essa intenção é da filosofia. “A escrita é muito anterior, muito ancestral e muito infantil”, filosofa.



Marcia, não posso negar que seu caso é um grande desafio, Marcia.


Com o forro do chão completamente gasto, o quarto romance de Marcia Tiburi deixa ver algo diferente. É o primeiro protagonista homem que aparece em um livro seu. Com uma máquina fotográfica nas mãos, ele tenta criar um retrato da família. Suas imagens saem desfocadas porque ele usa duas lentes ao mesmo tempo. Uma para as lembranças do passado e a outra para o tempo presente do relato. O título não esconde nada do leitor, nem do terapeuta. “Era meu esse rosto não tem fundo falso”. Marcia não esconde nada, sua escrita é lustrosa como o chão da casa. Parece um espelho. Se eu fosse um personagem dela, ficaria o dia inteiro sentado no sofá, todo de preto e com a mão apoiada na cabeça. Até que o leitor se inquietasse.


Ah, nenhum segredinho mesmo, Marcia?



Biblioteca: Três estantes de mármore embutidas na parede. Estão distribuídas em cômodos diferentes da casa: “Os livros de literatura estão todos no quarto, a parte de filosofia fica na sala de jantar e a psicanálise na sala de visitas”.


Leitor ideal: Aquele que sabe se apaixonar pelo estranho e pelo inquietante.


Personagem: A baleia Moby Dick, de Moby Dick (Herman Melville)