Acompanhamento: Macarronada com frango e suco de groselha

Trilha sonora: Cotidiano (Chico Buarque)

João, não queria perturbar o seu domingo, João. Estava tudo bem aqui na casa de campo. Desde que cheguei comecei a escrever. Você tinha razão, o silêncio do interior é diferente. Abro a janela e é como se olhasse para o nada. Árvore. Árvore. Outra árvore. Vacas pastando. Árvore. Galinhas piscando. Outra Árvore. Achei que fosse exagero seu, mas realmente a cabeça esvazia. O relógio não manda nas horas. Estive trabalhando muito no texto sobre você, João. E no final do dia tenho tempo de sobra. Comecei a cuidar do jardim na falta de conversar com alguém. Não vejo nem o caseiro. À noite deixo a garrafa vazia na soleira da porta e ele enche de leite antes de eu acordar. Além de mim, apenas os teus livros ocupam a casa. No início regava o gramado, a horta e as flores. Então descobri que as vacas adubam a terra voluntariamente com uma ração extra de milho. As galinhas quase pararam de piscar. Mas logo reforcei a falta de grãos com alguns legumes. A natureza é tão autônoma, João! Tudo parecia em plena harmonia. Mas de repente vi que não domino muito esse mundo do interior. Como te disse, João, estive trabalhando tanto no seu texto que nos últimos dias não coloquei o pé para fora de casa. E justo quando estava nas últimas linhas, algo estranho aconteceu. Pensei em pedir ajuda para o caseiro, mas ele nunca mais apareceu por aqui. A essas alturas, João, você é a única pessoa que pode me ajudar. Depois de varar noites escrevendo, abri a janela pela manhã. Árvores, árvores, árvores. Um espesso matagal tomou conta do quintal. Sou alérgico a insetos, você sabe. Não creio que seja muito seguro sair sozinho. Por isso peço que você venha me encontrar um pouco antes do combinado. Tomara que o caseiro encontre este bilhete dentro da garrafa vazia.


 


– Ah João, que alívio, achei que você não viesse!

 


Olha aqui, meu senhor, não havia nenhuma placa proibindo mudar a dieta dos bichos ou regar as plantas com abundância. Como eu ia saber que se deve arrancar as ervas daninhas até a raiz? Olha, o seu Carrascoza insistiu que eu ficasse à vontade e que levasse o tempo que fosse preciso para terminar o meu trabalho. Vamos fazer o seguinte. Me devolva esse bilhete, por favor. Agora o senhor vai esquecer o que viu por aqui. E depois vai tratar de providenciar um kit jardinagem para darmos um jeito nisso. Garanto que quando o seu Carrascoza chegar, ele vai ter uma grande surpresa.


 


– O senhor pode pegar a tesoura e podar por aqui ó, isso, pode cortar sem dó!

 


Quando chegaram no interior de São Paulo, nenhum dos Anzanello sabia falar português. Mas como todos imigrantes italianos do navio, procuravam por um pedaço de terra. Foram levados ao interior depois de ancorar no porto de Santos. Despejado junto com a família em frente à maior fazenda da região, nonno Anzanello olhou para o alto da porteira. Enquanto a placa entalhada Cravinhos dava as boas-vindas, o seu Vêneto, ingrato, estava cada vez mais endividado.


 


– Temos que abrir um pouco mais, use a machadinha. A passagem ainda está muito estreita!

 


Das terras brasileiras brotaram novas safras de filhos. Além da plantação de cravos, o café ajudou a fazenda Cravinhos a alargar as cercas do terreno. Prestes a desmamar de Ribeirão Preto, a pequena província precisava como nunca de braços fortes para a lavoura. Trinta anos depois dos italianos, o avuelo Carrascoza foi descarregado com a família diante do trevo de acesso. Enquanto a faixa pintada Cravinhos sinalizava a entrada na nova cidade, a Andaluzia, coitada, estava nas mãos de Franco.


 


– Ótimo, a entrada vai ser exatamente aqui. Traga o ancinho para tirarmos as folhas, por favor?

 


Italianos e espanhóis araram e semearam a mesma terra, até que as colheitas chegaram. Como vai se chamar o nosso terceiro filho? – perguntou o filho dos Carrascoza. Ao que a moça dos Anzanello respondeu – Não pode ser Juán nem Giovanni, então fica João. João Anzanello Carrascoza.


 


– E a placa de madeira vai ficar lá no alto, por gentileza.

 


Com a ajuda do genro, nonno Anzanello comprou um pedaço de terra. “O que deu de bom na tua roça?” – João imita o pai negociando as sacas de milho e de café. Muitas vezes o acompanhava até os armazéns da cidade. “Ele tinha um discurso envolvente com os compradores e sabia usar as palavras” – João beija a ponta dos dedos como se acabasse de experimentar o sal do molho. Enquanto o genro incrementava os lucros, o nonno pôde aumentar os hectares. Com o café e a cana-de-açúcar rendendo, construiu uma casa para a filha ao lado da sua. Também ergueu a primeira escola da região para que ela desse aulas. João e os irmãos se embrenhavam no terreno do avô. “A terra se espalha por todos os meus livros” – João agita os braços feito um pião na superfície. Por fim, Anzanello cimentou uma capela para o genro. Agora sim, ele dava a bênção do casamento.


 


– Olha! Não são as vacas e as galinhas logo ali?

 


Os vizinhos da cidadezinha paravam no meio da calçada para conversar. “Se você vai ser um escritor, é porque num primeiro momento você é um bom ouvinte” – João esfrega uma mão na outra como se a arapuca estivesse armada para o passarinho. Quando o pai voltava de viagem, João esperava acordado até tarde. Ainda com cheiro de estrada, começava a contar o que tinha visto no caminho. “Mas o que acontece depois do final?” Os irmãos apagavam e João ficava mais aceso.


 


– Tome um pouco d’água, ainda temos que abrir uns 100 metros em linha reta.

 


A mãe de João guardava os livros da escola dentro de casa. Mas a maior estante que chegou a conhecer foi a da tia Maria. Sua estrutura cobria toda a parede da sala de estar. Enfileirados nas prateleiras, livros, livros, livros. Ela tinha apenas uma censura: a seção pessoal de A. J. Cronin. Começou liberando a coleção do Monteiro Lobato. Ao terminá-la, João começou a frequentar a biblioteca da escola. “Na época, a série Vagalume tinha apenas uns 50 títulos” – lembra. Seu nome ficou meses inteiros na lista de espera. A secretária então sugeriu a biblioteca pública, ao lado da prefeitura. Lá encontrou Sthendal, Proust, Tolstói e Tchekhov. Todos as traduções eram assinadas por Mário Quintana e Drummond. João leu os clássicos que um dia foram lidos pelos tradutores e que agora o levavam até a prateleira da letra D: Drummond, Carlos. Impurezas do Branco. “Pode mesmo fazer esse negócio?” – João se dava conta, pela primeira vez, de que a poesia não estava presa aos versos. Ou que cada prosa podia ter a sua poesia. Passou pela letra L. Lispector, Clarice. Depois na R. Ramos, Graciliano. Rosa, Guimarães. Em pouco tempo teve que tomar ônibus até a biblioteca de Ribeirão Preto.


 


– Não se preocupe, o caminho é tortuoso assim mesmo. Tenho tudo aqui no meu mapa!

 


Antes de chegar em casa, João adivinhava a presença da mãe pelo volume do rádio. Ela deixava na estação de Ribeirão Preto enquanto fazia o almoço. João a observava cortar as cebolas com os chiados de Cauby Peixoto ao fundo. À tarde, ouvia com ela os capítulos de O Direito de Nascer. Sempre que os encontros secretos de Maria Helena com Alfredo estavam prestes a ser desmascarados, a mãe imitava o locutor – Não perca o próximo capítulo! Com a primeira televisão, assistiam juntos Nino, o italianinho. As cenas eram mais reais, os personagens tinham rosto. Mas quando Juca de Oliveira estava prestes a fazer uma grande revelação à Aracy Balabanian, a mãe lia a vinheta – Continua… “Era pura narrativa”. João ficava vidrado igual à mãe diante da tela preto e branco. “A diferença com os livros é que não se precisa adiar o prazer”.


 


– Vamos, vamos! Ainda temos que aparar as sebes antes do João chegar!

 


Quando o vizinho Ahmad comprou a televisão nova para os jogos da Copa de 70, João foi assistir a final com os pais na casa ao lado. Nem os folhados preparados pela mulher do comerciante eram tão impressionantes quanto o amarelo-ovo do uniforme brasileiro. Nos 40 minutos do 2º tempo o capitão do time chutou para o gol e cumpriu o palpite do Presidente da República: 4 a 1 para o Brasil. Noventa milhões em ação, pra frente Brasil do meu coração! Naquele dia João engrossou o coro, mas quando o Governo lançou os selos dos correios com Pelé e Carlos Alberto estampados, compreendeu: “A narrativa não está só nos folhetins e nas novelas”.


 


– Esse corredor aqui vai levar até a única saída, não se esqueça.

 


Aos 13 anos de idade, com a ausência do pai, João passou noites pensando no que aconteceria depois daquele final. “Eu decidi contar histórias e ser vendedor igual ao meu pai”. Aos 17 anos se matriculou na Escola de Comunicação, em São Paulo. Os cursos de publicidade eram recentes no país. “Embora a biblioteca da Usp fosse maior que a da tia Maria, não tinha nenhum livro pra ler sobre o assunto” – constatou. Foi então que no 2º ano de faculdade, começou a trabalhar em agências de publicidade. Se anotasse tudo o que aprendia no trabalho, publicaria um livro chamado Evolução do texto publicitário. “Eu não só explicaria, eu também contaria uma história” – João sonha acordado como o pai. Formado, com título de mestrado e doutorado, conseguiu demonstrar o que a publicidade tem de literatura: “Fazer comerciais é o mesmo que contar histórias, só que em 30 segundos”.


 


– Ótimo trabalho! A largura dos corredores e a altura das laterais está perfeita. Cadê o João, que não chega?

 


“Sozinho fui percebendo como se constrói um personagem e como se faz pra história caminhar”. No final dos anos 80, João se dividia entre as redações da agência e alguns contos que escrevia para concursos. Com eles foi selecionado para a oficina literária do escritor João Silvério Trevisan. A cada aula os textos eram lidos e comentados por todos. Um dos colegas, o escritor Nelson de Oliveira, lembra quando pegou na mão um dos contos datilografados por João: “O sexo e a violência desapareceram, os longos e tortuosos parágrafos à maneira do realismo mágico também”. João se defende: “Quando você está experimentando, você não tem a sua própria voz ainda” – João se equilibrava entre Cortázar e Rubem Fonseca. Até que um dos exercícios de escrita atentou João para o seu caminho: 1º passo) Escolha um lugar privado para não ser perturbado; 2º passo) Tire a roupa diante do espelho; 3º passo) Escreva o que consegue ver. Silvério alertava os alunos: “Você tem que se voltar para si ao invés de olhar pelo mundo dos outros autores”.


 


– João, que bom que você veio! Você acredita que o tempo passou tão rápido que nem percebi?

 


O habitat natural da escrita de João sempre foi o conto, apesar de ter bifurcado o seu trajeto com romances infantojuvenis, como As flores do lado debaixo e Histórias para sonhar acordado. Juntando todos os textos curtos editados para o público adulto, além dos publicados em jornais, revistas e coletâneas, seu chão de contista percorreu mais de cem histórias. “Se Carrascoza fosse um autor irregular, com altos e baixos, o trabalho do organizador seria mais tranquilo”. E se Nelson de Oliveira, o próprio organizador da antologia O volume do silêncio (2007), vencedora do 94º Prêmio Jabuti na categoria Contos e Crônicas, tem algo a implicar – é com o rigor e a disciplina que João cultiva sua literatura. Hotel Solidão, seu primeiro livro de narrativas breves, foi publicado após a oficina literária da Rua Três Rios. Com 32 anos, ornou a entrada dos anos noventa com uma das mais belas coletâneas do gênero, além de emplacar o 1º Prêmio no 14º Concurso Nacional de Contos do Paraná. Os trabalhos seguintes só deixaram o conjunto da obra mais frondosa. O vaso azul (1998), Duas tardes (2002), Meu amigo João (2003), Dias raros (2004) e Espinhos e alfinetes (2010) podem ser reconhecidos de longe, a perder de vista.


 


– Toma João, esse novelo de lã é pra você não se perder lá dentro.

 


João olhou para o grande labirinto e examinou o novelo desconfiado. E como se fosse um desses personagens que cumprem uma vida inteira em poucas páginas, ele caminhou até a entrada: “Se a viagem é longa, muitas são as paradas” – acenou.


 


– Mais devagar João, a linha está muito esticada, devagar!

 


“O conto é o tempo de uma vida” – João desenrola a bola felpuda enquanto caminha. Ele toca nos arbustos que formam as laterais e reconhece as terras em que foram cultivados. “A história de um escritor está na sua raiz”. O chão de pedras-macaco é o mesmo por onde corria quando menino. E seus contos são um encompridamento do caminho, como alguns dos seus personagens poderiam dizer. “Eu entendi que Cravinhos era o meu mundo, de onde eu tiraria alimento para a minha literatura” – João se deixa folhear facilmente. Embora o terreno da sua ficção esteja no interior, a vida dos seus personagens se prolonga e avança o cercado. Eles aprendem com os espinhos, com as formigas e com as flores. Sua linguagem literária se entrelaça na beleza das palavras. “Não vou fazer uma literatura que corre pra lá e pra cá” – João fala como se os olhos fossem poucos para abraçar as grandezas da vida.


 


– João, você prometeu que não ia deixar a linha arrebentar, João!

 


“Eu estou preocupado com o caminho do outro”. João segue pelo corredor verde-musgo com o novelo inteiro para si. Ele tece uma relação muito próxima entre os personagens nos seus textos. Nessa teia, reconhecer o tempo e o silêncio de cada um é essencial. No conto O vaso azul, o filho vai visitar a mãe depois de meses. É preciso que o silêncio se deposite nos móveis para que Tiago perceba o vaso de flores vazio sobre a TV. O cristal da Bôemia, comprado em uma de suas viagens, faz com que ele se dê conta de que a mãe jamais arrancaria as flores dos canteiros para enfeitar a sala. “Trouxera-lhe uma dor, não uma lembrança como até então supunha” – o filho percebe depois de tanto tempo. A linha narrativa de João é tênue como um fiapo, capaz de trançar acontecimentos do cotidiano ao despertamento íntimo dos personagens. Em Dias Raros, um menino vai passar as férias com a avó a contragosto. Depois de resistir tanto, ele se surpreende de como o tempo passa quando se está distraído: “Mas já?”.


 


– João, João? Você consegue me ouvir aí de dentro?

 


“As histórias não tem muita ação” – João recolhe o fio enquanto senta para descansar. Ao recobrar o fôlego continua: “Mas o mundo interior dos personagens vai sendo delineado”. Determinado como Teseu, João segue com passos firmes entre as sebes. No conto Caçador de vidro, o pai leva o filho para conhecer a fábrica de vidros na cidade: “Ele achou que todas as casas na cidade seriam de vidro”. O barbante de João penetra mais fundo no pensamento do menino: “E então seria um jardim cada bairro, um campo cada cidade, uma floresta o mundo”. Feito o nó lá dentro, o olhar deslumbrado do personagem é conduzido para fora, onde só há reboco e cimento: “Olha a chaminé!”. A trama também é interna no conto Duas tardes, em que Antônio encontra o irmão Pedro depois de cinco anos. As lembranças de infância são atadas dentro do silêncio dos dois. A tessitura de João permite que os personagens vejam a mesma coisa, embora não falem: “Quando chegaram, as águas haviam arrastado quase tudo: as cercas, as tábuas do chiqueiro, as paredes da casa…”.


 


– O que eu vou fazer se o João não sair nunca mais, meu deus?

 


“É preciso ir até a raíz dos eventos” – João se orienta pelos mínimos gestos e ruídos. Em O menino e o Pião, o filho espera ansioso que o pai volte do trabalho. Sua linha amarra o gesto do menino, sentado no degrau em frente à porta de casa, à espera do pai. Enquanto uma ponta do novelo imobiliza o que o leitor vê sem dificuldade: “Estou aqui, pai, à tua espera”. A outra enlaça o que está embaixo da demonstração que só o pai poderia ver: “Eis em tuas mãos a minha vida”. Também os gestos mais extravagantes são desenleados por João. No conto Visitas, marido e mulher recebem um antigo casal de amigos em casa. As conversas na mesa de jantar são um grande emaranhado de etiquetas: “Acho que errei no sal”. “Não! Está na medida”. Ao desenredar linha por linha, as impresões mais verdadeiras são separadas das formalidades: “O anfitrião de olho nos cabelos brancos e nos dentes amarelados do amigo; a dona da casa, nas rugas da amiga e nos lábios que não tinham mais a vitalidade de antes”.


 


– Pelo menos eu fiquei com uma parte da linha.

 


Tenho só mais um pedido a fazer para o senhor. Se alguém perguntar, diga que o João nunca esteve aqui. Do fundo do coração gostaria que ele voltasse, mas se ele quis assim, vamos tratar de respeitar, certo? Não é ele quem vive dizendo que a chegada é de pouca valia? Agora mãos à obra porque tenho um bocado de melhorias a fazer nesse labirinto.


– Garanto que se o seu Carrascoza voltar, ele vai ter uma grande surpresa.

 


 
Biblioteca: Madeira de carvalho entalhada à mão com divisórias de vime. O nichos foram confeccionados especialmente para livros de contos. “Tive essa ideia quando comecei a ler os contistas dos anos 70, como Roberto Drummond, Luiz Villela e Sérgio Sant’Anna”. Desde então, os pequenos abrigam narrativas curtas de Tchekhov, Raymond Carver, Faulkner, Cortázar, Clarice Lispector e Saramago. Cada capítulo de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, foi encaixado em um compartimento diferente: “Pra mim, são pequenas narrativas muito bem amarradas”. Vidas Secas, de Graciliano Ramos, também: “Sempre desconfiei que era um livro de contos”.
Leitor ideal: Aquele que remoça o texto. E também aquele que pode não saber dizer, mas entende o que está na entrelinha.
Personagem: Baleia, de Vidas Secas (Graciliano Ramos)