MutinhaII


Acompanhamento: X-Calabresa com Irish Coffee


Trilha sonora: Music in twelve parts (Philip Glass)



Mutarelli, sei que você não vai ler essa entrevista, Mutarelli. Por isso gravei essa fita k7 para você ouvir. Amanhã o porteiro vai interfonar para o seu apartamento. – Seu Lourenço, tem um sedec aqui pro senhor! O porteiro não sabe falar sedex, mas me garantiu que a correspondência vai chegar direitinho. Espero que você goste de ouvir a entrevista nesta fita. Minha voz não é muito boa. Mas me esforcei na dicção. Baixei um aplicativo que ensina caretas na frente do espelho para aquecer as cordas vocais. E olha, eu entendo que você não goste muito de ler as próprias entrevistas. Eu também me sentiria estranho se fosse você. Mas talvez ouvindo ela fique diferente. E a sua foto ficou ótima. Parece um galã. Coloquei ela junto com a k7 no envelope do sedex. E se você não ouvir nem mesmo essa gravação, então a Lucimar com certeza vai. Eu mandei a entrevista para o seu email. E como sei que é a sua mulher quem cuida da caixa postal, ela vai ler. Ah, se vai. Inclusive porque fiz um P.S. contando o que você falou sobre ela no depoimento, Mutarelli. Para terminar essa gravação, eu gostaria que você mandasse lembranças para a Dotôra e o Dotô, para a Mentira, a Mia e também para a Gê Preta. E espero que vocês me convidem mais vezes para tomar café com uísque.



Na primeira visita, o porteiro disse que não havia ninguém ali com esse nome, Mutarelli. – Ah, o seu Lourenço? Lembro sim, é aquele dos cinco gatos e que vive sujo de tinta. Só um minutinho que vou interfonar. Subi até o segundo andar e a porta do 201 já estava aberta. Os cinco gatos se aproximaram para receber a visita. “A Dotôra gosta de estranhos” – sua voz achocolatada saiu da cozinha. Peguei a Dotôra no colo e entrei. Esperei na sala enquanto ele preparava o café. O jogo de paciência estava aberto na tela do computador. Fingi não reparar na pontuação. Louças se batiam lá dentro. Esperei.



Dotôra, sai de cima dele, Dôtora!


A primeira vez que o pai do Mutarelli viu o garoto desenhando, ele tinha cinco anos. Copiou uma gravura de um dos livros do pai. Era de uma série de romances policiais. Entre Raymond Chandler e Agatha Christie viu um ilustrador italiano chamado Giovanni Battista della Porta. Ele desenhava homens com carrancas de animais. Mutarelli escolheu o que tinha cara de carneiro e copiou os traços. – Vejam só, o moleque é artista igual ao pai! O pai era policial, mas também lia Morris West, desenhava e fazia pontas no teatro e no cinema. Ele lia realmente de tudo, menos os russos. “Era coisa de policial ser contra os russos”, Mutarelli abriu as mãos vazias e franziu a careca numa série de gominhos. O garoto tentava empurrar Dostoiévski, Leskov, Gogol e nada. Mas com o desenho, notou que convencia. A família, que antes achava esquisito tudo o que saía da boca do filho do meio, sentava no tapete da sala para participar do jogo. O pai suava. Os demais faziam silêncio enquanto os dedos ossudos traçavam um dos familiares com fuça de animal. Nem todos ficavam contentes.



Ô Dotô, vem aqui dá um jeito na Dotôra!


Na casa dos Mutarellis não havia tinta. Então os experimentos eram feitos com remédios. Usava mercúrio para o vermelho e spray de garganta para amarelo. Algumas dessas misturas podem ser vistas no álbum Sequelas, que reúne dez anos do seu trabalho em quadrinhos. Mas naquela época a mãe ainda insistia: Vai ser policial igual seu pai, Lourenço! Mutarelli aumentou as sessões de adivinhação. Recebia famílias inteiras da Vila Mariana. Nem todos saíam contentes. Mas foi só o tempo de entrar na Faculdade de Belas Artes. “Eu queria fazer quadros”, ele riu pelo nariz com um jato de fumaça. Ao mostrar uma de suas telas à professora, ela disse imediatamente que ele seria um bom quadrinista. “Eu me senti meio ofendido”, disse timidamente enquanto sugava o café pelas bordas da xícara. Um dos gatos esticou o pescoço com o ruído.



Mia, esse café não é pro seu bico, Mia!


No segundo ano de faculdade, Mutarelli trabalhou com Mauricio de Sousa no estúdio de animação Black & White. Havia uma gibiteca só para os funcionários, onde Mutarelli conheceu os quadrinhos contemporâneos. Perdia a hora do almoço para ler Richard Corben, José Muñoz e lambeu os dedos com o italiano Liberatore. Começou como intercalador e depois foi cenarista. “Lá não era necessário misturar remédios”, riu em silêncio, chacoalhando os ombros. Depois de três anos pediu as contas. Com a grana do fundo de garantia comprou material de primeira. Desenhou até esgotar o estoque de tintas. “Meu sonho era sair na Circo”. A revista era publicada pela Circo Editorial, o tchã dos anos 80. Nos quadrinhos nacionais só dava Angeli, Glauco e Laerte. Dos estrangeiros, apenas a crème, com Robert Crumb e Moebius. Fez os próprios fanzines e os distribuiu. Mas as editoras achavam seus desenhos sombrios demais. – Desculpe, só publicamos autores conhecidos e engraçados. Quando saiu com as tirinhas do Cãozinho sem Pernas na revista Animal, continuou anônimo e com humor pavoroso. As primeiras histórias curtas saíram na revista Porrada. E a primeira graphic novel se chamou Transubstanciação. Uma história em que o personagem assassina o próprio pai e só enxerga liberdade através da morte.



Tá bom Mia, mas esse é o último gole!


Durante a I Bienal Internacional dos Quadrinhos do Rio de Janeiro, Will Eisner trazia o troféu embaixo do braço e um envelope polpudo. Mutarelli ouviu seu nome ser anunciado duas vezes num português brabo. – O prêmio de melhor história vai para Transubstanciação, de Louretzou Mutarelley. Empatado com o Por que sinto tanto prazer pela dor?, de Louretzou Mutarelley. Mutarelley ganhou seu primeiro lugar pela primeira vez. Duas vezes. A produção de quadrinhos se estendeu para 12 títulos. Levou a coroa de melhor desenhista nacional por três anos seguidos. E mesmo assim, o dinheiro dava apenas para o aluguel. Trabalhava até 18 horas por dia. Sem intervalo e sem sair de casa. Ainda bem que existe a Lucimar nessa história.



Gê Preta, cadê a mamãe Lucimar, Gê Preta? Mã mã mã, grrr, cadê cadê?


A Lucimar dava aulas particulares e pagava as contas. Não foi à toa que ganhou um livro de quadrinhos só para ela, o Eu te amo, Lucimar. Com o dinheiro do primeiro prêmio, os dois se casaram. Durante um carnaval, Mutarelli ficou sozinho em casa enquanto Lucimar e o filho foram à praia. Havia apenas terminado a trilogia de Diomedes, o detetive charlatão. Então sentou e escreveu o que seria o seu primeiro romance, O cheiro do ralo. Ao voltar, a mulher e o garoto encontraram o marido esverdeado e com um cheiro estranho. Ele esticou o caderninho suado: “Fiz nesses cinco dias”. Lucimar não é boba. Leu e sentenciou. – Não, não. Você fez isso em 38 anos, meu bem.



Mentira, divide o café com o rapaz, Mentira! Ô egoísta!


Muita gente implicou quando Mutarelli publicou o primeiro romance. “Pfff, ele veio dos quadrinhos!”, tentou cuspir igual a um dos críticos. “Eu respeitava tanto a literatura que jamais escreveria um livro”. Acredito, Mutarelli, acredito. Mas o desrespeito foi um bom começo. O herói da história é um sujeito odiável. Ele é dono de uma loja de velharias e se aproveita dos vendedores desesperados. O seu único constrangimento é o bodum do escritório. “O cheiro é do ralo”, ele avisa a cada cliente que entra pela porta. Seu nariz é contrariado quando um deles retruca: “Não, não é não. O cheiro vem de você”. A causa do fedor fica clara. O espertalhão come todos os dias no mesmo boteco para contemplar a bunda da garçonete. Com um menu du jour de x-calabresa, x-vinagrete e x-egg, a sua cara fica amarela e o cheiro do ralo insuportável. O leitor mastiga cada naco da narrativa apenas uma vez. As frases são curtas. O personagem se diverte com trocadilhos infames: “Até disso fui privado. Fui privada. Associo”. Ele pensa como se apertasse os botões do controle remoto: “Queria ter o poder do zoom, do quadro a quadro e da pausa. Voltar, congelar e rever. Possuir. Ejetar e voltar a meter”. Seu humor é cretino. As descrições dão cenas iguais aos quadrinhos, mas sem usar os balõezinhos na cabeça dos personagens. E as sequências resvalam com um puxão de descarga. Pouco tempo depois de ser publicado, o livro virou filme. Mutarelli, artista igual ao pai, fez uma ponta nas gravações. Aumentou seu público com leitores que nunca haviam lido os quadrinhos. Recebeu um prefácio do escritor preferido, Valêncio Xavier. E ganhou a simpatia de Chico Buarque. O cantor disse que O cheiro do ralo havia trazido um novo ar para a literatura, ainda que o cheiro fosse estranho.



Ai ai ai Mentira, larga essa xícara já! O que o rapaz vai pensar da gente?


Mutarelli havia feito uma cirurgia nos molares superiores. Implorou ao dentista por uma dose tripla de anestesia. Chegou em casa desnorteado. Passou a tarde engatinhando com os gatos. “A Lucimar disse que eu sorria e a minha boca sangrava”. Durante o transe, atendeu um telefonema e aceitou a encomenda: O Natimorto teve que ser escrito em 15 dias. Com o segundo livro, a literatura teve os tabefes que sempre merece. Um músico acredita ver o próprio destino nas figuras dos maços de cigarro. Com medo do que está por vir, ele propõe a uma cantora que passem o resto dos seus dias num quarto de hotel. O absurdo engatinha pela a história e sorri para o leitor como se tudo fosse normal. A cantora tem uma voz tão pura que só pode ser ouvida pelo músico. Dessa vez Mutarelli misturou dois gêneros para criar a narrativa. O teatro e a poesia. A obra foi para os palcos e logo em seguida também virou filme. Igual ao pai, Mutarelli saiu novamente em cena. Agora como protagonista.



Se você quiser, você pode sentar com a gente aqui no tapete, né Mentira? Diz pro rapaz, diz!


Nem todos os livros de Mutarelli são escritos em poucos dias. O terceiro título foi trabalhado durante um longo ano. A Arte de criar efeito sem causa é uma experiência mais atrevida. O personagem Júnior não é odiável nem biruta como os demais. Ele leva um chifre da mulher e abandona o trabalho na distribuidora de autopeças. Ao tentar esquecer o episódio, ele fica cada vez mais desorientado. Sua perturbação é simulada por um novo recurso da escrita de Mutarelli. Quando Júnior estica um braço ou coça o nariz, suas ações são indicadas por um item que era vendido no antigo trabalho: “11209051082. Anel do rolamento. Júnior cambaleia até a cozinha”. É como se a narrativa fosse montada por essas peças. Quando o personagem sai do eixo, os códigos se misturam. Então o leitor também alucina. Júnior tenta explicar ao médico o que sente: “Um monte de coisas que aparece com essa coisa de repetir, repetir, repetir”. A linguagem entra em colapso. Mutarelli não tomou outra dose de anestésico, ele apenas misturou os desenhos com a literatura.



Mentira, esse é o último cafezinho que você dá pra ele! E pode caprichar na espuminha!


Mais encomendas vieram. Então Mutarelli colocou os personagens para ajudar nos pedidos. Jesus Kid é a história de um escritor de aventuras Western, que tem três meses para escrever um roteiro de cinema trancafiado num hotel. Miguel e os demônios também foi escrito para as telas. Nele, um policial tenta desvendar o caso que envolve seu próprio chefe, um travesti e uma múmia mexicana. E em Nada me faltará, o personagem Paulo volta para casa depois de um ano desaparecido. Completamente desmemoriado, ele tenta descobrir o que fez com a mulher e a filha. A produtora RT Features banca Mutarelli enquanto ele tiver histórias para escrever. Mas fica com os direitos audiovisuais sobre os livros. E ele escreve todas as manhãs, desde O cheiro do ralo. Acorda às seis, passa o café e vai para a jaula. “Esse quartinho dos fundos tem grades porque a Gê Preta fica impossível quando a Lucimar não está”. Depois ouve Music in twelve parts até entrar em transe. Dá um pause no cd e se atraca a escrever até às duas da tarde. No resto do dia está tão esgotado que não consegue pensar em novas histórias. “Fico jogando paciência, lavo os pratos e ofereço café para as visitas. Isso costuma funcionar”. Que honra, pensei. Mesmo sem entender como o ajudaria.


– Obrigado por me receber, Mu mu mu ta reee lli, grrr.



Biblioteca: Modelo cristaleira, cedro envernizado com portas de vidro. “Eu e a Lucimar temos os livros separados. Não deixo ela mexer nos meus. É que depois de ler, ela dá os livros dela”. A seção preferida de Mutarelli é a de autores mortos: “Você pode ler a obra completa deles como se fosse um livro só. Li Ionesco como se fosse um romance”.


Leitor ideal: Aquele que rabisca o próprio livro e não se sente culpado.


Personagem: Arturo Bandini, de Pergunte ao Pó (John Fante)